Debate boca!

MEMORIAL DO IMIGRANTE
PODE PERDER SEU ACERVO


Em carta aberta, comunidade opõe-se ao anúncio de retirada dos acervos da instituição

Vinculado à Secretaria de Estado da Cultura, o Memorial do Imigrante, instituição paulista voltada à preservação da memória das migrações, enfrenta atualmente um dos mais graves problemas de sua história. Uma longa história que já teve seu valor reconhecido tanto por órgãos estaduais e municipais competentes como pela Unesco.

Seu conjunto arquitetônico localizado no bairro da Mooca, que atualmente passa por um processo de restauro, abrigou, entre outros, a hospedaria de imigrantes e migrantes. Depois do término dessas atividades, voltou-se à preservação da memória das migrações, como Centro Histórico, Museu e, finalmente, Memorial do Imigrante.

Nesse resgate histórico, seu arquivo documental sobre imigração, constantemente consultado por acadêmicos, imigrantes e seus descendentes em busca de suas origens e interessados na obtenção de dupla cidadania, tem grande importância, assim como a comunidade, que se identifica e participa intensamente das atividades da instituição.

Porém, há mudanças à vista. O anúncio de que o Memorial do Imigrante não terá mais a guarda de seu acervo vai contra a comunidade e contra um trabalho desenvolvido há anos pela instituição. Dessa forma, o prédio seria utilizado apenas como um museu restrito a exposições, sem o desempenho de suas funções de pesquisa e preservação.

A seguir, a íntegra da carta em circulação na Internet.

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Carta aberta da comunidade
Contra a retirada dos acervos do Memorial do Imigrante
o futuro que almejamos para o Memorial do Imigrante de São Paulo e sobre o que se quer evitar



O título desta missiva talvez confunda o leitor que não está familiarizado com a atual situação do Memorial do Imigrante de São Paulo (MI). Essa instituição vinculada à Secretaria de Cultura do Estado (SEC) e sediada no prédio da antiga Hospedaria de Imigrantes do Braz, passa hoje por um dos momentos mais delicados de sua história. Uma história que não é pequena. Recordemo-la brevemente.

Em 1978, o prédio da Hospedaria de Imigrantes e Migrantes recebeu em suas dependências o seu último grupo de hóspedes. No mesmo ano, as autoridades estaduais responsáveis pela preservação do patrimônio histórico abriram processo para o tombamento do conjunto arquitetônico. No ano seguinte, entendendo que a história contada por esse prédio não se apresentava per si e, por consequência, reconhecendo o “valor histórico e documental” do acervo arquivístico da Hospedaria, procedimento análogo foi adotado para com este. Os dois processos chegaram a termo em 1982, com o tombamento desses bens culturais. Nos anos seguintes o município de São Paulo seguiu a mesma direção, com a realização do duplo tombamento. O acerto dessas ações pode ser atestado pelo fato de a Unesco ter, em 2009, reconhecido os Livros de Matrícula da Hospedaria de Imigrantes como parte da “Memória do Mundo”, confirmando “o valor excepcional e interesse nacional de um acervo documental que deve ser protegido para benefício da humanidade”.

Para garantir a adequada preservação desse conjunto documental, foi criado o Centro Histórico do Imigrante (1986). Essa iniciativa ganhou vulto e, com seus objetivos alargados, o Museu da Imigração abriu suas portas em 1993. Em um passo mais ousado, esse Museu foi transformado em Memorial no ano de 1998.

Mais do que uma mudança de nome, essa alteração significou um enquadramento completamente novo para a instituição. O novo Memorial foi então constituído pelo Museu da Imigração, o Centro de Pesquisa e Documentação, o Núcleo Histórico dos Transportes e o Núcleo de Estudos e Tradições. A intenção agora não era apenas abrir a Hospedaria para a visitação pública, mas fazer isso por uma perspectiva crítica, associada aos esforços para preservação dos registros desse passado, recolha de novos registros e ampliação do estado do conhecimento sobre os fluxos migratórios tão significativos para a história do estado e do país.

Pois bem, todo esse esforço encontra-se agora sob forte ameaça!

Soube-se há poucos dias que o MI passará por uma funesta “reformulação”. Servindo-se do contexto de reforma e restauro por que passa o prédio, a Secretaria de Estado da Cultura (SEC) anunciou que pretende abrir mão da guarda de todo o acervo custodiado pela instituição! O prédio voltaria a abrigar apenas o museu, tendo as suas atribuições significativamente diminuídas.

Para que se saiba precisamente do que falamos, esse acervo é hoje constituído, entre outros tipos, por documentação oriunda da antiga Hospedaria de Imigrantes e da Inspetoria de Imigração do porto de Santos. Juntos, os dois conjuntos são procurados por milhares de pessoas (presencialmente ou pela internet) com os mais diversos interesses, que vão da reconstituição das próprias origens até pesquisas de cunho acadêmico, passando pelos diversos descendentes de imigrantes que buscam documentos probatórios com o fim de instruir processos de obtenção de dupla cidadania.
Também fazem parte do acervo as Fichas de Registro da antiga Delegacia Especializada de Estrangeiros de São Paulo. Conjunto bastante pesquisado, tem certidões frequentemente emitidas para o uso em processos de naturalização, além de servir como prova de identidade de um estrangeiro.

O acervo arquivístico conta ainda com um grande volume de documentação administrativa dos órgãos que funcionaram no prédio da Hospedaria, um centro de iconografia e, importante ressaltar, um vasto conjunto de documentos e objetos pessoais doados ao MI por imigrantes e seus descendentes com o intuito de preservá-los e possibilitar às futuras gerações o contato com esse rico material.

Produto da preocupação da instituição em reconstituir as memórias dos processos migratórios, também fazem parte desse acervo mais de 500 entrevistas (produzidas pelo setor de História Oral) com imigrantes e pessoas ligadas a esse processo (diversas já falecidas) que concordaram em compartilhar um pouco de suas vidas com a comunidade.

E aqui deve ser ressaltada a ideia de “comunidade”. Mais do que o lugar de reunião de um acervo, o MI é hoje um polo de referência para diversos grupos que encontram nele um lugar de contato com as suas origens. O prédio da Hospedaria, hoje ressignificado, é dotado de uma carga simbólica considerável. Mais do que servir de registro material de um dado período da imigração, ele congrega a referência identitária desses diversos grupos.

Essa identidade, por sua vez, só se constituiu devido ao “todo” que o MI representa. Retirar-lhe o acervo é abstê-lo de uma parte constitutiva de sua história, desconhecer o próprio intuito dos processos de tombamento e sequestrar a vontade de todos aqueles que doaram seus bens diretamente à instituição porque ali se sentem reconhecidos e representados.

Privar-lhe das funções de pesquisa e recolha de acervos e testemunhos é também um retrocesso em um país ainda tão carente de um trato mais sério e digno para com a sua história, além de se constituir em um significativo transtorno para todos aqueles que, como indicado acima, se servem dos serviços do MI para fins legais.

Cremos que isso explica porque essa carta não é dirigida à SEC. Ela brota do seio da comunidade paulista e paulistana, diversificada por sua própria constituição histórica, formada por imigrantes de todas as partes do mundo e migrantes de todos os cantos do Brasil, para cá vindos nos mais diferentes trânsitos históricos, entre sonhos e pesadelos, forçados por situações que lhes escapavam ou levados por esperanças que os incentivavam. Enfim, aqui estabelecendo novas raízes e deixando marcas no tempo.

É essa comunidade que fala a ela mesma. Que agora busca juntar forças com todos aqueles que entendem que o futuro não pode prescindir do tempo já vivido e que preservar esses registros é dever de todos.

Pois é assim, com ajuda de todos, que poderemos sensibilizar as autoridades estaduais (que nada mais são do que nossos representantes) a rever essa medida que não pode nos parecer outra coisa além de um absurdo.